Mediações para pensar das formações midiatizadas em modos de
produção baseados em tecnologias digitais: o caso Brasil
Jairo
Ferreira
Prof. Dr.
PPGCC – UNISINOS
O
estágio nos processos midiáticos atual é de ruptura com um longo período. Com
as tecnologias digitais, há uma superação dos dispositivos que deixam o
receptor fora do processo de produção. O receptor ingressa no processo como
produtor, e os produtores clássicos da “sociedade de massa” – instituições
midiáticas – assumem o papel de receptores midiáticos como condição de
continuidade do lugar institucional que disputam na esfera da produção. A
midiatização sofre um deslocamento histórico, em que a circulação inter-midiática
passa a polarizar a produção social de sentido, correlata ao deslocamento de
agentes e instituições não midiáticas ao lugar de produção ao lado das
instituições midiáticas clássicas da “sociedade de massa”.
As
produções dos discursos contemporâneas, nesse modo de produção, não pertencem
mais isoladamente às instituições não midiáticas (modelo clássico, que fundou a
visão de Aristóteles sobre a comunicação); nem, às midiáticas (modelo da
sociedade de massa); mas incorporam, transformadas, os discursos dos agentes
sociais em rede que, nesse processo, almejam a conquista da individualidade
(mesmo que formal).
Nessa
fase de ruptura de longo alcance, se coloca a possibilidade de construção e
revelação de discursos potenciais (entendendo esses como denegados, reprimidos,
mas não realizados). Há, é claro, dispositivos nesses modos de produção mais
propícios a essas superações (por exemplo, o facebook e o blog mais do que o
twitter ou o MSN). Mas há situações novas (exemplo: narrativas distribuídas em
dispositivos móveis, em que o celular é utilizado para distribuição e, quem
sabe, valorização/circulação de discursos).
Outra
dimensão de ruptura é a emancipação do discurso de domínios específicos da
técnica (literária, cinematográfica, documental, jornalística, etc.), com
potencial retorno a todos os que, reunindo algumas competência e capitais, e
seguindo os padrões técnicos articulados às tecnologias disponíveis, fazem a
sua própria configuração dramática (a consagração dos amadores, conforme
Flychy, 2010).
Mas
a midiatização não é um processo homogêneo, com validade universal. Não é
aplicável a todos os territórios, regiões e espaços sociais. Sua configuração
está delimitada por seu pressuposto: é necessário que os indivíduos se insiram
como, potencialmente, sujeitos de
seus discursos, o que implica na requisição de sociedades civis que tenham
respondido às premissas da mercantilização da cultura, da política e da
economia. Ou seja, a inserção dos receptores na esfera da produção, como
dimensão central da circulação autonomizante, requer que os indivíduos sejam
“livres” – mesmo que isso seja conforme os pressupostos da liberdade mercantil
(formal), para que, aí, situem-se de diversas formas, seja como sujeitos à ou como sujeitos de.
É
nesse sentido que falamos de formações sociais singulares. Uma formação social
será potencialmente mais midiatizada conforme os diferentes níveis de autonomia
formal dos indivíduos, mesmo que essa formalidade seja aparente, na medida em
que subordinados às diversas determinações sociais e biológicas. A autonomia
formal dos indivíduos se manifesta em produção de discursos próprios, requisito
sócio-antropológico à inscrição dos mesmos em dispositivos midiáticos. Mas
autonomia dos indivíduos deve ser contextualizada por mediações antropológicas,
discursivas e tecno-tecnológicas.
As mediações sócio-antropológicas
Recordando a proposição: o pré-requisito
sócio-antropológico da midiatização é a mercantilização diversificada da
sociedade (não só econômica, mas cultural, política, dos desejos, afetos,
etc.). É nas brechas das diversas economias em circulação, que o individuo se
coloca. Mas esse contexto não é homogêneo nas diversas formações midiatizadas.
Umas das diferenças fundamentais se referem ao corte identificado por Lahire
(2002) entre as práticas (esquemas de longo prazo identificáveis nas condutas)
e as interações e usos (onde são visíveis os esquemas de curto prazo).
Por isso, a perspectiva de Lahire (2002) é
interessante para pensar a força dos processos de interação e usos perante as
práticas sociais incorporadas na formação social midiatizada no Brasil. A
formação brasileira é próxima aos casos de “desvio e desajustamento” (Lahire,
2002) do mundo social. Destacamos algumas específicas:
1.
Contradição com o até então
incorporado _ diversidade histórica e cultural da formação Brasil, sem
hegemonia definida. Ou seja, não há projetos fortes de um Brasil purificado
etnicamente.
2.
Migrações internas remetendo a
diversidade
3.
Desvios entre disposições e
situações – os outros em ambientes de outros, etc.
4.
Transformações históricas
fortes – populismo, ditadura, democracia, novas configurações recentes, na
economia e na política.
Nesta sociedade, singular, as perspectivas
que analisam as práticas perdem valor perante aquelas que acentuam as
mediações, as interações, ou, se quisermos, entre nós, a circulação. Essas
situações acentuam a importância do presente sobre o passado, das interações
relativamente aos contextos, dos usos em relação às práticas. Configura-se aí uma base no real (ontológica),
que fortalece ângulos interacionistas na análise dos processos de comunicação
no Brasil. Mas isso significa que temos, nessas situações, o indivíduo em
processos de liberdade de escolha?
Mesmo que o espaço de liberdade seja
restrito, é nessa perspectiva que pensamos o individuo: atravessado por
diversas determinações, não resta, ao individual, senão elaborar suas próprias
sínteses, não predominantemente lógicas, mas principalmente em discursos
próprios, em interlocução com seus pares no presente, em interações. O inverso
disso é a violência, física ou simbólica, como método de resolução do conflito
social decorrente da diversidade de práticas em jogo nas interações.
A unificação do mercado linguístico versus sentidos e
discursos em disputa
A unificação dessa diversidade tem uma base
na formação econômica e política, caracterizada como “via prussiana” por
Carlos Nelson Coutinho. A grande mediação que acentuamos na unificação da
diversidade de práticas é a unificação do mercado linguístico. No Brasil, essa
unificação começa atravessa várias fases, do período colonial à república, com
acento nos períodos de regimes autoritários. Esta mesma política foi adotada em relação à
migração de africanos e, depois, de italianos, alemães, russos, poloneses, etc.
no século XIX e XX. Mas é no século XIX e XX, especialmente junto às regiões de
imigrações de japoneses, italianos e alemães, que o processo ganha novas marcas.
Nesse sentido, é interessante pensar os
processos autoritários não apenas decorrem da problemática das relações entre
economia e política - como frisam as análises marxistas. Está evidente que os
regimes autoritários no Brasil são parte das tentativas de hegemonias culturais
pela via prussiana (desde cima, do Estado).
A unificação linguística, entretanto, não
assegura a unidade de sentido (semiótica) e discursiva (desde a construção de
um imaginário compartilhado até as estratégias sociais unificadoras da ideia de
nação). Os processos discursivos, pelo contrário, mesmo com base na mesma
língua, manifesta a diversidade de práticas, nos processos de interações e
usos. Nesse sentido, a ideia de polissemia, no caso de uma sociedade em
permanente situação de crise de desajustamentos, deveria ser repensada.
Teoricamente, esse contexto está muito bem
decifrado, por Bourdieu (1982). Nessa coletânea, afirma que as línguas derivam
de codificações e imposições generalizadas que são requisitadas pela dominação
de uma autoridade política. A existência dessa autoridade é uma necessidade
para um mínimo de comunicação num espaço de produção econômica e dominação
simbólica. A escola ocupa um lugar fundamental nesse processo de
“socialização”, que é sempre incompleto, pois que, inscrita nos processos de
comunicação, a língua normatizada é transformada conforme as estratégias de
apropriação, interpretação e uso de produtores e receptores.
Nossa formulação é de que essa dispersão de
sentidos e discursos nos processos de comunicação produzidos com base nos
códigos linguísticos compartilhados sofre fraturas simbólicas diversas em
sociedades em permanente crise de desajustamento como o Brasil. As diversidades
são filo-genéticas, psico-antropológicas e sociais. É dessa diversidade que
emerge, paradoxalmente, a força e o valor das interações nos processos
comunicacionais no Brasil, pois que se trata de encontrar soluções no aqui e
agora (ser “criativo”), suspendendo as práticas de referência para que os
possíveis sejam viabilizados.
As instituições e indivíduos em tentativas[1]
Nesse contexto de diversidade de práticas,
as interações e usos ganham peso maior relativo, ao mesmo tempo em que expõe a
ausência de referências que conservem a ideia de sociedade. Os desajustes são
permanentes (culturais, econômicos, políticos e societários).
Os esforços de conservação
(estabelecendo referências em termos de práticas) requisitam um trabalho redobrado
das instituições coletivas (a generalização das relações públicas de que fala
Bernard Miège), ao mesmo em que a diversidade de práticas favorece a
individualização das relações sociais. Emerge, nesse quadro, características de
uma fragmentação pós-moderna sem ter passado pela realização dos desafios da
modernidade.
Num
espaço social marcado pelo valor das interações perante as práticas
incorporadas, a força dos dispositivos aumenta em termos de regulações. Não se
trata de regulações de Estado (centralizadas), nem das regulações da cultura (baseada
nas práticas de conhecimento, reconhecimento, vinculo e conflito), mas da
dispersão de formatos de regulações mediadas por comunicação midiatizada,
conforme os públicos de produção-recepção-circulação.
Bibliografia
BOURDIEU,
Pierre. Ce que parler veut dire. L’économie des échanges linguistiques. Fayard,
1982.
BRAGA, José
Luiz. Nem rara, nem ausente – tentativa. In: Matrizes, v. 4, n. 1 (2010).
disponível em http://www.matrizes.usp.br/index.php/matrizes/article/view/179.
FERREIRA,
Jairo ; FOLQUENING, V. . O individuo e o ator nas brechas da midiatização:
contrabandos em espaços conjuminados. Diálogos de la Comunicación (En línea),
v. 1, p. 1-21, 2012.
LAHIRE, Bernard. O homem plural. Vozes, 2003.